A Física brasileira durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1949)

A atmosfera de tensão causada pelos conflitos ao longo do globo ocasionou, em 1939, o que conhecemos como Segunda Guerra Mundial, na qual países do Eixo, constituído por Alemanha, Itália e Japão entraram em guerra contra os Aliados, liderados por Inglaterra, União Soviética, França e, posteriormente, Estados Unidos. Neste contexto, a dinâmica entre países afetou relações tanto diplomáticas quanto científicas em todo o mundo.


No Brasil, em 1937, o presidente Getúlio Vargas institui o Estado Novo (com golpe político para se manter no poder), substituindo, prematuramente, a Constituição de 1934 - que dava o direito ao voto universal e outras bases para o exercício da democracia[1] - por um texto muito semelhante àqueles de países totalitários da Europa,[2] com foco na “restauração” de uma identidade e austeridade nacional.[3] Este período foi caracterizado por diversas estratégias para a industrialização do Brasil, incluindo negociações tanto com os Estados Unidos quanto com a Alemanha.[4]


No caso da Alemanha, as relações se davam em termos comerciais devido às políticas de intercâmbio econômico deste país, que não exigiam intermediação por “moedas fortes”, como dólar ou libra[5]; em termos culturais, na questão eugênica que ganhava espaço no Brasil, desde 1930[7]; e diplomaticamente com negociações para construção do parque industrial.[8]


Com os Estados Unidos houve uma aproximação instaurada a partir da chamada Política de Boa Vizinhança. As diretrizes desta política se deram, economicamente, com a implantação de fábricas[9] e, culturalmente, através dos meios de comunicação (rádio, TV, cinema etc.), visando a construir uma simpatia pelo estilo de vida norte-americano e por seus valores.[10] Alguns desses artifícios se deveram às ações e financiamentos do milionário estadunidense Nelson Rockefeller, através do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA) no campo da comunicação, e da Fundação Rockefeller no campo das pesquisas científicas.


Já no final da década de 1930, intercâmbios e cooperações científicas e culturais entre Brasil e Estados Unidos, financiados pela Fundação Rockefeller, vinham acontecendo. Um exemplo disso foi a cooperação de Arthur H. Compton, da Universidade de Chicago, com o grupo paulista formado por Gleb Wataghin, Giuseppe Occhialini, Marcello Damy de Souza Santos e Paulus Aulus Pompéia. A significância dessa colaboração, iniciada em 1939, se deu muito além do campo ideológico. A relevância da pesquisa em raios cósmicos realizada pelo grupo brasileiro levou, em 1941, à descoberta dos showers (“chuveiros penetrantes”) - fenômeno consequente da colisão de partículas cósmicas com a atmosfera.



Figura 1: Experimento de raios cósmicos utilizando balões, 1941. Foto do Acervo IFUSP


Gleb Wataghin incentivava que os resultados das pesquisas feitas no Brasil fossem divulgadas em revistas internacionais - como a Physical Review, onde publicou alguns dos resultados brasileiros sobre os showers - e também que seus alunos fossem estudar no exterior.[11] Este tipo de incentivo foi crucial para estreitar relações com Compton, que veio ao Brasil com sua equipe em 1941 participar do Simpósio sobre raios Cósmicos ocorrido no Rio de Janeiro, onde o resultado das pesquisas do grupo paulista, assim como os de outros pesquisadores, foi apresentado.



Figura 2: Reunião Final - Encerramento do “Symposium” Sobre Raios Cósmicos - Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1941. Documento do Acervo IFUSP.
1 - Gleb Wataghin; 2 - Donald Hughes; 3 - Norman Hilberry; 4 - Arthur Moses; 5 - Arthur H. Compton; 6 - William P. Lesse; 7 - Ernest O. Wollan; 8 - René Wurmser; 9 - Francisco Souza; 10 - F. M. de Oliveira Castro; 11 - F. Venancio Filho; 12 - J. Costa Ribeiro; 13 - Othon Nogueira; 14 - F. Magalhães Gomes; 15 - Arthur do Prado; 16 - Alvaro Alberto; 17 - Menezes de Oliveira; 18 - Junqueira Schmidt; 19 - Yolande Monteux; 20 - Paulo R. Arruda; 21 - Giuseppe Occhialini; 22 - M. Cruz; 23 - Carlos Chagas Jr.; 24 - Ignacio Azevedo Amaral; 25 - M. D. de Souza Santos; 26 - Bernard Gross; 27 - Abrahão de Morais; 28 - Paulus Aulus Pompeia; 29 - Pe. F. X. Roser S. J.


Com a entrada dos Estados Unidos na guerra - contra o Japão em 1941, e em 1942, contra os outros países do Eixo, o Brasil se viu pressionado e declarou sua participação junto aos Aliados. A entrada do Brasil na guerra resultou em um corte de relações diplomáticas com os países do Eixo. No que diz respeito à FFCL, muitos professores italianos e alemães, que vieram em 1934, foram exonerados de suas atividades, dentre as exceções estavam os italianos Gleb Wataghin, que se mantiveram no Brasil pela importância de suas pesquisas, mas perdeu os vínculos formais com a USP, sendo exonerado do cargo, e Giuseppe Occhialini, por ser declaradamente antifascista, passando a trabalhar como guia de alpinismo da região de Itatiaia-RJ.


O Brasil participou no esforço de guerra através de missões na Itália, para onde foram enviadas tropas do exército brasileiro. No campo científico, houve suspensão da pesquisa em raios cósmicos dentro do Departamento de Física da FFCL para que os trabalhos fossem mais dedicados ao esforço de guerra: estudos de balística, radares e desenvolvimento de aparelhos para identificar submarinos, além de estudos a respeito das propriedades dos materiais ferromagnéticos. Marcello Damy, diretor do Departamento de Física nessa época devido ao impedimento de Wataghin, participou em conjunto com outros cientistas do desenvolvimento de um sonar para a Marinha. Tal trabalho recebeu financiamento do recém-criado Fundo Universitário de Pesquisas para a Defesa Nacional, surgido por conta da participação da Universidade no esforço de guerra.


Outros trabalhos de físicos brasileiros foram realizados no exterior durante o período de guerra, como é o caso de César Lattes, em Bristol, e de Sonja Ashauer, em Cambridge.


Em 1944, Occhialini foi para Bristol trabalhar com a detecção de partículas usando raios cósmicos. Entretanto, havia uma carência de físicos ingleses no Reino Unido devido aos esforços de Guerra e Occhialini precisava de mais pessoas trabalhando com ele. Em 1945, ele enviou um convite a Lattes para que este trabalhasse no aperfeiçoamento das emulsões nucleares, um detector de partículas que estava sendo recuperado de um ostracismo.


O trabalho de Lattes, que chegou a Bristol em fevereiro de 1946, contribuiu para o desenvolvimento de emulsões nucleares, levando-o a capturar e identificar, em 1947, a partícula proposta teoricamente pelo físico japonês Hideki Yukawa, o méson pi[13]. No mesmo ano, Lattes foi para a Universidade de Berkeley trabalhar com o estadunidense Eugene Gardner, onde conseguiu, em 1948, a produção artificial de mésons, usando um acelerador de partículas (sincrocíclotron de 184 polegadas). Essa produção alterou o rumo da Física pelas décadas seguintes, contribuindo para o desenvolvimento da chamada big science - com a construção de aceleradores cada vez maiores e mais potentes.



Figura 3: Exposição Méson 40 anos e Ciência e Educação. Foto do Acervo IFUSP.


Em 1945, Sonja Ashauer, também aluna e assistente de Wataghin, foi estudar na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, sob a supervisão do físico britânico Paul Dirac, Nobel de Física em 1933. Sonja foi a primeira mulher brasileira a conquistar um título de doutorado em Física no exterior, com sua tese intitulada “Problems on Eletrons and Eletromagnetic Radiation”.


Em 9 agosto de 1945, mesmo dia em que as forças dos Estados Unidos lançaram uma bomba atômica sobre a cidade japonesa de Nagasaki, Sonja escreveu carta a Wataghin relatando sua visita à Irlanda para o Colóquio de Física Teórica no Instituto de Estudos Avançados de Dublin, e comenta sobre a notícia da bomba, mostrando sua surpresa com os avanços científicos da época.


A partir desses acontecimentos (desenvolvimento da bomba atômica e o fim da guerra) a Física ganhou um novo impulso, aumentando a necessidade de seu ensino e fomento para garantia de soberania por parte de países emergentes bem como as discussões éticas sobre sua potencialidade. Pela primeira vez, a humanidade tem em suas mãos um instrumento que pode causar a extinção de si mesma.[15]


Referências:


[1] Legislação Informatizada - CONSTITUIÇÃO DE 1934 - Publicação Original. Câmara dos deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-1934-16-julho-1934-365196-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 28 mai. 2018.


[2] Constituições de 1934 e 1937: a Era Vargas. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=264668. Acesso em: 28 mai. 2018.


[3] VARGAS, Getúlio. Proclamação ao povo brasileiro (Lida no Palácio Guanabara e irradiada para todo País na noite de 10 de novembro de 1937). Biblioteca da Presidência da República, 1938.


[4] MOREIRA, Regina da Luz. CSN: uma decisão política. FGV CPDOC. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/CSN Acesso em: 28 mai. 2018


[5] MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. Editora Brasiliense, v. 91, 1984.


[7] 1º CONGRESSO BRASILEIRO DE EUGENIA: Actas e trabalhos, Rio de Janeiro, 1929. Rio de Janeiro: s. n., 1929. v.1. 342 p. 613.94 C76. reg. 8328/06 ex.3. Acervo da Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788. Acesso em: 28 mai. 2018


[8] VILLELA, Gustavo. Na cartada do presidente Vargas durante a Segunda Guerra, nasce a CSN em 1941. Publicado em: O GLOBO: 02/04/18 - 13h 50min
Atualizado: 03/04/18 - 9h 03min. Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/na-cartada-do-presidente-vargas-durante-segunda-guerra-nasce-csn-em-1941-22547774. Acesso em: 28 mai. 2018


[9] MERENDA, Vagner. A industrialização brasileira no período entreguerras. Akrópolis - Revista de Ciências Humanas da UNIPAR, v.10, n.3, 2002.


[10] TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2000.


[11] WATAGHIN, Lucia. Fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: A contribuição dos professores italianos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 34, p. 151-173, 1992.


[12] LATTES, César; PAULA ASSIS, de Jesus. Descobrindo a estrutura do universo. UNESP, p. 32-34, 2001.


[13] SHELLARD, Ronald C. Partículas, aceleradores e detectores. Revista USP, nº 66 p. 54-61, 2005.


[14] DANTES, Maria Amélia M.; CHASSOT, Walkiria C. F. Sonja Ashauer (1923-1948). In: SAITOVITCH, Elisa Maria Baggio et al (Org.). Mulheres na Física: casos históricos, panoramas e perspectivas. São Paulo: Editora LF, 2015.


[15] HAMBURGER, Ernst W. Causas e Consequências de uma Guerra Nuclear. São Paulo: Editora Adusp, 1985.