Primeiros anos da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) (1934 - 1939)

A criação da USP, e da FFCL, se dá em um período bastante particular da história brasileira e mundial. Com a crise econômica de 1929, marcada principalmente pela quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, as principais potências alteraram seu modelo econômico - favorecendo os mercados internos e diminuindo progressivamente as importações - e diversos países, em especial Europeus, experienciaram a ascensão de governos totalitários e nacionalistas, enquanto os Estados Unidos progrediram com a política do new deal, com o governo assistindo às empresas afetadas pela crise.


O Brasil, movido pela exportação de café, sentia a interferência da crise pelo fim da “política do café-com-leite”, a partir da Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas[1]. A lógica de centralização de poder na Federação refletiu na perda de poder político de São Paulo e de Minas Gerais, fomentando a “Revolução Constitucionalista” de 1932[2], cujo objetivo era retomar as identidades[3] e poder dos estados, bem como propor uma nova Constituição baseada nos modelos de soberania nacional europeus. Essa violenta investida contra a Federação acabou interrompida pelo poderio militar federal, mas suas demandas ecoaram para a formulação da Constituição de 1934.


Neste cenário, por meio do decreto nº 6.283 de 25 de janeiro de 1934[4], foi formada a Universidade de São Paulo (USP) com a incorporação de instituições mais tradicionais criadas em diferentes épocas - como a Faculdade de Direito (1827), a Escola Politécnica (1894), a Escola Superior de Agricultura (1899) e a Faculdade de Medicina (1912), além de outras escolas menores. Foi a primeira universidade brasileira a ter em sua concepção uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, o que representou uma mudança na sua maneira de se instituir e em seus objetivos.


Nessa tentativa de revalorização da soberania paulista, tendo em vista também resolver o problema de dirigência da elite nacional e fomentar o desenvolvimento tecnológico, a concepção da USP buscou inspiração nas universidades alemãs (Berlim, 1810), de modelo humboldtiano[5], que se contrapunham ao modelo francês, napoleônico[7], focado na formação de uma população profissionalizada e tecnicamente apta ao trabalho. O novo modelo propunha foco em pesquisa e ensino com formação humanista, desenvolvimento da ciência desinteressada e autonomia relativa da universidade diante do Estado e da sociedade civil. As convergências entre essa estrutura e a USP podem ser percebidas desde seu decreto de criação. Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo e um dos fundadores da USP, afirma:


“Vencidos pelas armas, sabíamos perfeitamente que só pela ciência e pela perseverança no esforço voltaríamos a exercer a hegemonia que durante longas décadas desfrutáramos no seio da federação.”[8]


Assim, a USP, em especial a FFCL, buscava não só formar uma elite preparada para estabelecer as bases para o progresso do País, revalorizando a soberania paulista, mas justificar a existência dessa elite intelectualizada. Para isso, não seria suficiente apelar para conhecimentos e métodos - de ensino e pesquisa - produzidos em território nacional. A formação do corpo docente da FFCL foi composto a partir de missões internacionais enviadas à França, Itália e Alemanha, que trouxeram ao Brasil docentes europeus. O sucesso desta iniciativa passou a ser considerado a explicação para a boa reputação que a USP passaria a desfrutar. Como pode ser evidenciado nas palavras do professor Clodowaldo Pavan:


“A FFCL foi planejada para ser o centro da Universidade de São Paulo e teve sucesso porque para ela foram convidados diversos professores e pesquisadores estrangeiros, assim como brasileiros de alto nível. Se ela tivesse começado somente com docentes brasileiros o fracasso teria sido total. Note-se que à época o Brasil se curvava diante da influência cultural da França. Somando todos esses fatores e a necessidade de formar-se profissionais para áreas do conhecimento em que o atraso brasileiro era incontestável, estruturou-se a Faculdade de Filosofia, cujas finalidades principais eram: preparar trabalhadores intelectuais para o exercício de altas atividades culturais, de ordem desinteressada ou técnica; preparar docentes para o magistério do ensino básico e superior; realizar pesquisas nos domínios da cultura que eram o objeto de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.”[8]


A situação internacional, já mencionada, fez com que governos de países europeus, tais como a França e a Itália, incentivassem seus professores a aceitar os convites do estado de São Paulo para lecionar na nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Desta forma, em 1934, vieram para São Paulo professores franceses, nas ciências humanas; italianos, nas ciências exatas; alemães, nas ciências biológicas.


Para o departamento de Física da FFCL, Teodoro Ramos - um dos fundadores da USP enviado em missão à Europa a fim de contratar professores estrangeiros que viessem lecionar na nova Universidade - fez o convite ao físico italiano Enrico Fermi, que não pôde vir por estar concluindo trabalhos de grande importância, mais tarde reconhecidos com um prêmio Nobel. Contudo, Fermi indicou o físico russo-italiano Gleb Wataghin, da Universidade de Turim que chegou a São Paulo em 1934.



Figura 1: parte do laboratório na sala 21 do terceiro andar do prédio da Escola Politécnica, número 2 da rua Três Rios, onde se estabeleceu o Departamento de Física da FFCL, entre 1934 e 1937. A sala de 8x8 metros comportava todas as atividades do pequeno Departamento: aulas, experiências, construção de aparelhos e instrumentos, laboratório, leituras etc. Foto do Acervo IFUSP, doação de Guidolino Bentivoglio, técnico e figura importante na construção do Departamento.


Chamado para dar aulas na Escola Politécnica e convidado a criar o curso de Física da FFCL, Wataghin foi uma referência para o ensino superior de Física no Brasil, devido ao incentivo à pesquisa, a forte proximidade com os estudantes e a sua boa relação com pesquisadores estrangeiros, como Fermi, Dirac. Ao escolher Raios Cósmicos como objeto de pesquisa - tema de fronteira à época e que exigia poucas verbas, Wataghin propiciou o desenvolvimento do Departamento de Física.



Figura 2: Wataghin junto a contadores Geiger e aparelhos eletrônicos para contagem de raios cósmicos. Foto do Acervo IFUSP.


A primeira turma da FFCL se formou em 1936, composta por alunos que se tornariam pesquisadores notáveis, como Marcello Damy de Souza Santos e Mario Schenberg. O compromisso com a ciência desinteressada e o desenvolvimento intelectual para além do interesse em carreiras tradicionais se repetiu em toda a história da FFCL.



Figura 3: Marcello Damy junto aos aparelhos eletrônicos. Foto do Acervo IFUSP.



Figura 4: Mario Schenberg trabalhando na sala do terceiro andar da Escola Politécnica, em 1937. Foto do Acervo IFUSP, doação de Guidolino Bentivoglio.


Em 1937, formou-se a segunda turma da FFCL, com a presença da primeira mulher graduada em física no Brasil, Yolande Monteux, tendo trabalhos de reconhecida importância apresentados em simpósios nos anos seguintes e que, por mais de 20 anos, foi uma das poucas mulheres com diploma superior trabalhando no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas). No mesmo ano, a convite de Wataghin, veio à USP o físico italiano Giuseppe Occhialini, conhecido por seus trabalhos em física experimental com Patrick Blackett. Num período tão próximo ao início da segunda Grande Guerra e com o regime totalitário, forte na Itália, Occhialini, por ser declaradamente antifascista, não poderia continuar suas pesquisas em seu país natal.


Dentro de um contexto internacional de grande crise, no Brasil formou-se um grupo liderado por Wathagin e Occhialini que se tornaria responsável pela formação de parte da primeira formação de cientistas brasileiros que, em anos seguintes, teriam papel de liderança na consolidação da Física no Brasil.



Figura 5: Wataghin (terceiro, da esquerda para a direita) e Yolande Monteux (quinta, da esquerda para a direita), ao lado de Andrea Wataghin, também físico e filho de Gleb Wataghin, antes do embarque no avião da Força Aérea Brasileira para experiência sobre raios cósmicos. Foto do Acervo IFUSP.



Figura 6: Giuseppe Occhialini trabalhando na sala do terceiro andar da Escola Politécnica. Foto do Acervo IFUSP.


Referências:


[1] SILVA, Hélio; CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira: Fim da Primeira República 1927-1930. São Paulo: Edições ISTOÉ, vol. 7, 1998.


[2] SILVA, Hélio; CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira: A Revolução Paulista 1931-1933. São Paulo: Edições ISTOÉ, vol. 8, 1998.


[3] PINHO, Diva Benevides. Feriado 9 de julho e a USP – São Paulo derrotado impõe-se culturalmente. Disponível em: https://bibliotecafea.com/2012/07/06/feriado-9-de-julho-e-a-usp-sao-paulo-derrotado-impoe-se-culturalmente/. Acesso em: 28 mai. 2018


[4] Normas USP. DECRETO N.º 6.283 DE 25 DE JANEIRO DE 1934. São Paulo-SP. Disponível em: http://www.leginf.usp.br/?historica=decreto-n-o-6-283-de-25-de-janeiro-de-1934. Acesso em: 28 mai. 2018.


[5] MOROSINI, Marília Costa (Org.). A universidade no Brasil: concepções e modelos. 2ª ed, Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), 2011.


[6] DE PAULA, Maria de Fátima Costa. USP e UFRJ: a influência das concepções alemã e francesa em suas fundações. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 14, n.2, p. 147-161, 2002.


[7] ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Metodologia de Ensino na Universidade Brasileira: elementos de uma trajetória. 3ª ed. In: Castanho, M. E e Castanho, S.. (Org.). Temas e textos em Metodologia de Ensino Superior. 4ª ed, Campinas: Papirus, 2006, v. 1, p. 57-70.


[8] FERREIRA, Alexandre Marcos de Mattos Pires. A Criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP - Um Estudo sobre a Formação de Pesquisadores e Professores de Matemática e Física em São Paulo. São Paulo: Tese de Doutorado PUC-SP, 2009.


[9] MESQUITA FILHO, Júlio. Política e cultura. São Paulo: Martins, 1969.