Defesa Sumária do Prof. Mario Schenberg

Esta página contém uma transcrição do seguinte documento, escrito por Mario Schenberg:




DEFESA SUMÁRIA DO PROF. MARIO SCHENBERG NO INQUÉRITO POLICIAL MILITAR REALIZADO NA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS


Este documento não pretende ser propriamente uma defesa contra as acusações incoerentes e infundadas que me foram feitas por alguns professores da USP e pelo DOPS. A bem da verdade desejo reconhecer que algumas dessas acusações seriam até lisonjeiras para mim, se estivessem bem fundamentadas. Infelizmente, tudo o que se afirmou parece gratuito e sem prova.


Segundo os senhores professores que me acusam, a gravidade do meu caso seria devida a minha projeção intelectual. Lamento muito não poder compartilhar da obscuridade dos professores que me acusam. Na melhor das hipóteses talvez a senilidade consiga reduzir o meu nível intelectual ao padrão recomendado para evitar a periculosidade alegada. Mesmo assim, não haveria remédio para a projeção já conquistada na vida científica e cultural brasileira. Minha posição de fundador da Física Teórica brasileira é irreversível, pertencendo à História.


Quanto ao relatório do DOPS de S. Paulo, já refutei no meu depoimento numerosas imputações falsas e distorções até grotescas de fatos do domínio público. Creio que isso é suficiente para caracterizar a falta de capacidade intelectual e até de idoneidade dos informantes. Entre inúmeros fatos banais surgem atribuições pasmosamente incoerentes de declarações desfavoráveis ao PCB e outras que poderiam ser interpretadas como de simpatia para com o fascismo durante a 2ª Guerra Mundial. É pública e notória a minha posição coerentemente esquerdista datando de mais de 3 décadas.


No momento em que talvez seja encerrada a minha carreira científica e universitária no Brasil, contra a minha vontade, desejo que fique bem clara a minha posição e que fiquem bem definidas as responsabilidades pelos eventuais prejuízos que o meu afastamento ou demissão possam acarretar para o desenvolvimento da ciência brasileira e até para a segurança nacional. Na etapa atual de desenvolvimento tecnológico do mundo, a segurança nacional depende essencialmente do nível científico e tecnológico de um país, devendo os quadros científicos merecer todo carinho e estima.


É indiscutivelmente de sacrifício a situação de qualquer cientista competente no Brasil. Faltam-nos os recursos mais elementares para pesquisa. Percebemos remuneração irrisória e continuamente decrescente em poder aquisitivo real. Por outro lado, recebemos contìnuamente propostas extremamente sedutoras de centros estrangeiros. Só permanecemos no Brasil por patriotismo e profundo sentimento de responsabilidade nacional. Infelizmente, nos últimos tempos a situação dos cientistas brasileiros se agravou de tal modo que o êxodo assumiu proporções alarmantes. Instituições das mais importantes como o Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo, a maior escola de Física do Brasil, vêem-se ameaçadas de perder 50% dos seus cientistas formados e de entrar em colapso total.


Minha situação pessoal só se diferencia da geral para pior. Há mais de dez anos venho lutando desesperadamente contra a incompreensão das autoridades para que o Departamento de Física da FFCL da USP cresça e seja a grande escola de Física, indispensável ao desenvolvimento de S. Paulo. Sendo catedrático dos mais antigos e de maior experiência humana, administrativa e mesmo científica, arquei com o peso principal das dificuldades de todos os tipos, com prejuízos consideráveis para minha atividade científica pessoal. Fui quase continuamente alvo de discriminações, devido à minha combatividade e às minhas idéias esquerdistas. Não desanimei, nem me deixei tomar pela amargura, consciente de que os meus sacrifícios pessoais serviam para dar condições de trabalho para os que iniciavam a sua carreira científica e permitiam o crescimento de uma instituição de importância básica para o progresso nacional.


Desde o dia 1º de abril deste ano, compreendi claramente os perigos que me ameaçavam. Poderia ter facilmente encontrado asilo em embaixadas estrangeiras e deixado sossegadamente o território nacional. Recebi várias propostas sedutoras de países estrangeiros, algumas já conhecidas publicamente e mesmo comunicadas às autoridades brasileiras. Por uma questão de consciência resolvi enfrentar o cárcere e outros vexames para agir de acôrdo com o meu senso de responsabilidade, e amanhã, não me envergonhar de ter abandonado uma obra de trinta anos no momento de maior dificuldade.


Sei perfeitamente que há probabilidades sérias de ser expulso de minha Cadeira. Sei também que, acalmadas as paixões políticas exacerbadas, justiça me será feita e poderei, se ainda o desejar, voltar ao meu cargo com a projeção de que já sou possuidor, ainda exaltada pelas palmas do martírio. Só me preocupa a perspectiva de ver perdida para o Brasil uma obra de trinta anos, a que dediquei os melhores anos de minha vida, juntamente com os esforços de tantos cientistas brasileiros e estrangeiros, amigos do Brasil. Terei ao menos o consolo de ter deixado um exemplo de dignidade e patriotismo para os jovens de amanhã e o orgulho de ter contribuído permanentemente, como brasileiro, para o patrimônio da cultura universal. As manifestações de apreço e solidariedade que me vêm sendo oferecidas publicamente por tantos dos maiores cientistas da França, da Itália, da Alemanha, dos Estados Unidos e de outros países, mostra que não foi de todo inútil o sacrifício de tantos esforços.


Foi talvez o momento mais triste e doloroso de minha vida ver neste IPM as denúncias incríveis apresentadas contra mim por professores da USP e a sua preocupação pelo fato de ser eu um cientista de projeção. Terá chegado a hora de punir o talento e premiar a mediocridade? Será possível desenvolvimento científico à base da mediocridade?


A experiência histórica do progresso científico demonstrou de modo cabal que a ciência se desenvolveu onde havia plena liberdade de pensamento, expressão e discussão e onde a promoção do pessoal científico se fez exclusivamente pelo critério da capacidade de pesquisa e criação. As discriminações políticas, ideológicas, religiosas, raciais, etc., levaram sempre à decadência do pensamento sob todas as suas formas, especialmente do científico.


Essas são algumas das questões gravíssimas que se impõem à meditação de todos os brasileiros responsáveis e patriotas no grave momento da vida nacional que atravessamos.


Mario Schenberg, [1964]


Em 1964, entre aqueles professores que não apoiavam o golpe, muitos foram atingidos por Inquéritos Policiais Militares (IPM). Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, inicialmente, foram cinco os professores atingidos: Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes - Ciências Sociais;João Cruz Costa - Filosofia; Mario Schenberg, Física; Nuno Fidelino de Figueiredo, Letras. Schenberg foi aposentado compulsoriamente pelo Decreto de 29/04/1969, com mais 21 servidores da USP.